Racismo no mundo corporativo: O despertar de um mentor de carreira

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Foto: USP

Sou um mentor de carreira voltado ao desenvolvimento profissional de executivos. E sou, eu mesmo, um executivo, que ocupa um cargo de direção em uma empresa multinacional. Sou também professor universitário. E, veja você, eu sou um homem negro. Uma combinação de predicados muito rara no Brasil.

Mas custei a perceber o quanto essa lacuna de representatividade está ligada a um racismo estrutural, que permeia a sociedade brasileira desde sua fundação, e que agora é lembrado e se torna motivo de protestos por um fato lamentável de violência que aconteceu nos Estados Unidos – embora se repita sistematicamente nos nossos bairros de periferia.

Custei a notar essa evidência porque passei adormecido a maior parte da minha vida. Por muito tempo, eu me mantive isolado do pior que o racismo tem a oferecer. Por dois motivos. O primeiro foi por conta do lugar onde nasci e cresci: um bairro de periferia em Guarulhos (SP). Nesse bairro tem muito negro, a maioria das pessoas é negra. Os brancos do bairro muitas vezes namoram ou se casam com pessoas negras. Eu mesmo sou filho de mãe branca com pai negro. Então é difícil que a carga mais pesada do racismo se manifeste num espaço de predominância negra – ainda que saibamos que esse extrato num bairro de periferia já deriva da sociedade racista em que vivemos. Então, até minha adolescência, eu vivia entre iguais. Estava blindado. 

O segundo motivo está ligado ao êxito da minha trajetória educacional e profissional. Sempre fui considerado um rapaz inteligente em algumas áreas e um líder em outras. Essa combinação me levou a alcançar horizontes e camadas da sociedade que aqueles meus amigos de Guarulhos jamais tiveram oportunidade de frequentar. Sou gestor de outros gestores numa multinacional. E, pelo menos no ambiente corporativo, não se é racista com o chefe do seu chefe. A relativa autoridade e a notoriedade de quem chega longe assim me blindaram.

Não que eu não tenha percebido, no caminho, o quanto essa blindagem é motivo de estranhamento. Fui o único aluno negro do meu curso na universidade. Fui o primeiro negro a ser contratado na empresa onde fiz uma carreira bonita, de estagiário a diretor.


DOIS MOMENTOS
Mas parece que a vida queria mais de mim. Então ela me presenteou com alguns momentos que, finalmente, me levaram a um despertar. Entre esses instantes, destaco dois que aconteceram num congresso na Espanha, onde fui representar minha empresa.

No dia do evento, acordei cedo e fui me exercitar na academia do hotel. Havia ali um grupo de senhores espanhóis, e um deles, percebendo que eu era brasileiro e achando que eu não entenderia sua língua, virou-se para a recepcionista e disse: “a gente paga caro para usar a academia e é obrigado a compartilhar os equipamentos com índios?”. Então um colega dele emendou: “a única coisa boa que esses índios vêm fazer aqui na Espanha é jogar futebol”.

Conheci muita gente boa e especial na Espanha, mas esse grupo foi um presente que a vida me deu, pois me tirou da anestesia em que eu vivia.

Quanto ao segundo momento: em minha palestra no congresso, falei sobre a relação entre inteligência artificial e o mercado de seguros, e o público gostou da apresentação. Então, entre os cumprimentos, um dos organizadores me disse o seguinte: “Emerson, eu organizo esse congresso há mais de 30 anos, e você foi o primeiro negro a palestrar”.

Confesso que não consegui prestar atenção a mais nada do que ele disse em seguida. A blindagem tinha caído. Juntei esses pontos e, entre a revolta e uma breve sensação de impotência, me veio um despertar, tão urgente quanto inspirador: eu precisava fazer alguma coisa.

De volta ao Brasil, comecei a pesquisar e falar com especialistas, com professores, CEOs, diretores de áreas de sustentabilidade e diversidade das empresas, e cheguei a alguns dados estarrecedores sobre a desigualdade de oportunidades entre brancos e negros no mundo corporativo. 

No nosso país, 54% da população é negra. Mas na universidade só 24% dos alunos são negros. Nos cursos de mestrado e doutorado, menos: 14% dos alunos são negros. Entre as 500 maiores empresas do Brasil, 26% dos empregados, no total, são negros. Mas em cargos de gerência só 5%. E fica pior: em cargos de diretoria, apenas 2% são negros. Nos conselhos administrativos, 1%.

Então onde estão todos aqueles negros que compõem mais da metade da população brasileira? Eu respondo: 92% das empregadas domésticas são negras. Mais de 95% dos garis são negros.

Esse foi o meu despertar. Aprendi que circunstâncias da minha trajetória me blindaram para uma das distorções mais aviltantes das relações humanas. E que o racismo no Brasil não é um evento esporádico: é um problema estrutural. E vai continuar pautando relações e oportunidades profissionais se as pessoas não tiverem iniciativas que mudem a forma como o sistema funciona.

De minha parte, montei um projeto chamado CAUSA, que visa especificamente aumentar o número de executivos negros dentro das empresas de médio e grande porte. Tenho feito palestras abordando esse tema, apresentando essa realidade e tentando compartilhar, entre os profissionais negros que almejam uma ascensão de carreira, o que é necessário para transformar seus sonhos em realidade. É só o primeiro passo de uma iniciativa que terá outros desdobramentos.

Se o racismo é estrutural, e ao mesmo tempo é crime inafiançável pela legislação brasileira, uma constatação óbvia emerge desse paradoxo: a estrutura está errada.

Cabe a nós mudá-la.


Emerson Feliciano é treinador e mentor de carreira, idealizador do curso Mentoria P&D – Profissional e Diferenciado.


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