A Língua de Eulália (resenha)

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É muito provável que nós, brasileiros, tenhamos mais de um idioma ao nosso alcance. Podemos nos comunicar sem preocuparmo-nos com as regras da norma culta. É uma questão levantada por Marcos Bagno em seus livros. 
Em a Língua de Eulália, a fala da personagem é pouco comum aos mais letrados. Em verdade, as palavras proferidas espontaneamente por ela têm o poder de suscitar risos. Para sorte dos linguistas em geral, Eulália mora com uma respeitadíssima professora de Língua Portuguesa, Irene, numa chácara, no interior de São Paulo.
Nesse cenário é dado o norte do estudo sobre o “falar diferente”. Daí, o autor quebra conceitos da gramática tradicional e mostra um novo viés ao leitor, narrativa sucinta e prazerosa. Bagno faz-nos esquecer brevemente a possível existência da “complexidade” sociolinguística. 
Tudo começa nas férias de Emília, Sílvia e Vera, professoras do curso primário do mesmo colégio em São Paulo. Na chácara da professora Irene as três se deparam com uma língua até então incomum para elas. Envolvida com a vida na chácara, Eulália que trabalhava com Irene e passou a ser da família, fala inserindo o L no lugar do R, como no caso de “Ingrês” e outras pronúncias intrigantes para as jovens professoras.
Irene é muito respeitada profissionalmente por colegas de profissão e na comunidade. Criou um curso de alfabetização para adultos que funciona na chácara. O espanto com a fala caipira de Eulália passa a ser o assunto entre Irene e as três professoras, que vão compreender o valor da diversidade da língua como fonte da troca de experiência. É um português diferente.
Assim o autor detalha, com base na explicação de Irene e na fala de Eulália, as diferentes formas linguísticas, entre elas as diferenças fonéticas (no modo de pronunciar os sons da língua), diferenças sintáticas (no modo de organizar as frases, as orações e as partes que as compõem), diferenças semânticas (no significado das palavras) e diferenças no uso da língua. Naturalmente as línguas variam geograficamente e mudam com o tempo. A mudança (temporal) se chama mudança diacrônica. A variação geográfica se chama diatópica.
Irene usa, nas aulas de linguística às colegas, a letra da música “cuitelinho”. Na letra há expressões como: “Bera do porto”, “as garça”, “aço de navaia”. Vários conceitos foram abordados. Entre eles o mito da língua homogênea, ou seja, as multiplicidades linguísticas que existem e necessitam ser respeitadas, sendo que sua utilização não deve ser considerada inadequada, pois são modos diferentes de se falar a mesma língua. Seu emprego não prejudica o entendimento. Tudo que parece erro no português não-padrão (PNP) tem uma explicação científica e lógica, e acaba incentivando o ensino da norma padrão. Numa das aulas, um pouco para escandalizar as “alunas”, a professora distribui um quadro com dados como árvore - arve; córrego - corgo; fósforo - fosfro; música - musga, etc. As formas à esquerda são do português padrão e as da direita, do não padrão, como se percebe. Diante delas, as alunas riem, mas desconfiadas. Ocorre que, duas páginas depois, o autor apresenta dados como asno - ásinu; caldo - cálidu; frio - frígidu; genro - géneru; vermelho - vermículo; pobre - páupere, etc. Obviamente, os dados da esquerda são do português padrão, e os da direita, do latim.”
Bagno aborda o preconceito linguístico e explica que as variações se dão devido a circunstâncias do próprio uso da língua, que varia conforme as diferenças de gênero, classe social, etnia. Deixa explícito que não existe o modo “certo” ou “errado” de falar, pois cada pessoa possui sua língua própria, individual. Para provar sua tese, o autor utiliza propostas de ensino com bases científicas e forte teor crítico inseridos na trama de sua novela pelas personagens Irene, suas alunas e, principalmente, Eulália.
No livro, o autor compara o português padrão com o não-padrão para provar que há mais semelhanças que diferenças entre eles. Daí, discute que os falantes da norma não-padrão têm dificuldade de aprender a norma padrão, porque o primeiro é transmitido naturalmente, já o segundo requer aprendizado e, na maioria das vezes, essas pessoas pertencem à classe baixa que abandonam a escola cedo.
Por fim, nota-se que os termos “errados”, ou arcaísmos são verdadeiros achados linguísticos. É isso que o autor procura provar. Não existem muitas variedades não-padrão e há um grande número de elementos linguísticos e sociais. Já usar o termo variedade-padrão chega a ser um paradoxo, visto que padrão é modelo, referência ou critério de avaliação.
É necessário reconhecer as variedades no uso do português, sentir a manifestação linguística diferenciada, sem constranger o aluno como dissociado do conjunto, por não usar exclusivamente a norma culta. A novela trata disso.

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