Monólogo com o andarilho de Pasárgada (Manuel Bandeira e a poesia do acaso)

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A “estrela da vida inteira” do andarilho de Pasárgada, em monólogo.
Infância - Bem nascido no dia 19 de abril de 1886 por nome Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho. Foi à Rua da Ventura (atual Joaquim Nabuco), no Recife. Meu pai, Manuel Carneiro, via-me futuro arquiteto. Ledo engano seu e de minha mãe, Francelina Ribeiro Bandeira. 
Quatro anos depois, fomos para o Rio de Janeiro e depois para Santos (SP) e, novamente, para o Rio de Janeiro. Dois verões se passam em Petrópolis. Em 1892 voltamos a Pernambuco. Na Rua da União, fui “como os demais, feliz”. Frequentei o colégio das irmãs Barros Barreto, à Rua da Soledade, e, como semi-interno, o de Virgínio Marques Carneiro Leão, à Rua da Matriz.
Era o Recife pós-revoluções libertárias e pós-presença dos mascates. Em meu leito, Rosa contava histórias. Na rua brincava de “chicote-queimado” com os colegas. Nem sempre dava certo, pois dona Aninha Viegas naturalmente não gostava de ver as vidraças de sua casa quebradas. Essas traquinagens eram observadas com desapontamento pelo velho Totônio Rodrigues, que botava o “pincenê na ponta do nariz”.
À tardinha, encerravam-se temporariamente as brincadeiras. Depois do jantar, tudo retornava na presença dos vizinhos sentados em cadeiras nas calçadas. Ali se passavam também “mexericos, namoros e risadas”. As cantigas de meninos e meninas eram interrompidas por um grito de fogo em algum bairro, geralmente em “Santo Antônio” ou “São José”. Sentia raiva por não poder acompanhar os homens de chapéu que saiam fumando para ver o fogo de perto.
As tardes da Rua da União eram alegres. A “preta das bananas” passava com seu “xale vistoso de pano-da-costa”. Além dela, passava o vendedor de amendoim (midubim) torrado. No sertãozinho da Caxangá havia banheiros de palha. “Um dia eu vi uma moça nuinha no banho. Fiquei parado, o coração batendo. Ela se riu. Foi o meu primeiro alumbramento”. Ali a vida “não me chegava pelos jornais nem pelos livros”. Vinha da boca do povo que, com sua língua errada, falava certo o “gostoso português do Brasil”.
Preparação de um poeta – Aos dez anos de idade, fui mais uma vez com a família para o Rio de Janeiro. Moramos à Travessa Piauí, na Rua Senador Furtado e depois em Laranjeiras. Foi quando cursei o Externato do Ginásio Nacional (atual Colégio Pedro II). Quando estava prestes a completar 18 anos, já morando em São Paulo e no preparo para a Escola Politécnica e, assim realizar o sonho do pai em tornar-me arquiteto, surpreendeu-me a tuberculose.
Na verdade, a doença era o preparatório do poeta e o desmanchar do arquiteto. Estudei, à noite, desenho e pintura com o arquiteto Domenico Rossi, no Liceu de Artes e Ofícios. Também trabalhei nos escritórios da Estrada de Ferro Sorocabana, da qual meu pai era funcionário, mas sentia que nada disso me atraía.
À procura de melhores climas para a saúde, passei temporadas em diversas cidades: Campanha, Teresópolis, Maranguape, Uruquê, Quixeramobim. Mas, o esforço foi quase em vão. “- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado”, diria um médico mais tarde.
Li Charles de Guérin e tomei conhecimento das rimas toantes que empregaria em Carnaval, o primeiro livro. Assim nascia o poeta em parte muito triste e em outras, com uma ponta de desejo de ser libertino.
Pasárgada – Foi sob a influência de Apollinaire, Charles Cros e Mac-Fionna Leod, que surgiram os primeiros versos livres. Na Suíça, à procura de tratamento para a doença, conheci Paul Éluard. Na volta ao Brasil, fui morar à Rua do Triunfo e, depois, à Rua Curvelo, onde convivi mais tarde com grandes nomes da literatura nacional, a exemplo de Ribeiro Couto, Ronald de Carvalho, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda e Osvaldo Orico.
O encantamento com a cidade imaginária de Pasárgada deu-se logo, embora só escrevesse os versos muitos anos depois. Sempre tive uma queda por lugares imaginários presentes nos versos, duelando com a temática da tristeza.
O que poderia eu querer com Pasárgada, ou para que a teria criado? Talvez para fugir das dores, das tristezas e do fardo da doença. Diferente do mundo real, Pasárgada mostrou-se como “uma outra civilização com telefone automático”. Ademais, tinha o privilégio se ser “amigo do rei”.
Em Pasárgada era meu o direito à diversão, andar de bicicleta, montar em burro brabo e tomar banhos de mar. No cansaço, podia deitar na beira do rio onde a mãe-d’água, sempre às ordens, far-me-ia relembrar os tempos de criança, contando histórias.
Não era provável, mas, caso a tristeza chegasse, a ponto de à noite viesse a vontade de me matar, ficava tranquilo, pois, como amigo do rei, teria a mulher que desejasse, numa cama a meu gosto. Enfim, Pasárgada é um “símbolo supremo do lirismo”.
Poeta menor – Creio ter produzido uma poética leve, ousada e sem dificuldades no nível de leitura. Também não tinha enigmas no conteúdo. Pela ausência do clássico, peço desculpa a meu pai e aos leitores, pois, enfunado no lirismo, apenas consegui ser um “poeta menor”. O papel de poeta maior cabe ao contemporâneo Carlos Drummond de Andrade.
Esse humilde diagnóstico, comprovo-o em meu Testamento: ...Vi terras da minha terra./Por outras terras andei./Mas o que ficou marcado/No meu olhar fatigado,/Foram terras que inventei./Gosto muito de crianças:/Não tive um filho de meu./Um filho!... Não foi de jeito.../Mas trago dentro do peito/Meu filho que não nasceu./Criou-me, desde eu menino/Para arquiteto meu pai./Foi-se-me um dia a saúde.../Fiz-me arquiteto? Não pude!/Sou poeta menor, perdoai!...” - Sivaldo Venerando

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